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terça-feira, 1 de março de 2022

O carnaval de 1909


O carnaval era uma festa muito popular em Porto Alegre, nos últimos anos da primeira década do século.

O primeiro desfile oficial na capital gaúcha ocorreu em 1873, após a fundação da Sociedade Carnavalesca Os Venezianos, de cores vermelha e branca. No mesmo ano ou no ano seguinte sugiu a Sociedade Esmeralda, verde e branca, que se tornaria a tradicional rival dos Venezianos.

Porém o carnaval da cidade sofreria uma queda nos últimos 15 anos do século XIX. Os Venezianos, após o carnaval de 1884, fecharam as portas. O Esmeralda ainda sobreviveu mais alguns anos, mas também fechou suas portas antes do fim do século.

Mas em 1906 o carnaval renasce. Antigos sócios das duas sociedades decidem reorganizá-las. Em 1907 um grupo de estudantes funda a Sociedade Filhos do Inferno. E no ano seguinte é reorganizada a sociedade Os Vagalumes, que existira na década de 1880, mas estava inativa desde 1888.

No ano de 1909, além das entidades já citadas, mais algumas preparavam-se para o carnaval: Progressistas, Petit-Mômo, Sacca-Rôlhas e o Chove Não Molha, fundado por alunos da Escola de Guerra.

Essas sociedades possuíam cavernas, espaços que eram alugados para o período do carnaval, sendo utilizados para produzir e guardar o material e ensaiar o zé-pereira (o equivalente à bateria da escola de samba, na época). Em 1909 o Sacca-Rôlhas possuía sua caverna na rua Andrade Neves, o Esmeralda na rua 15 de Novembro e o Venezianos na rua dos Andradas.

O relacionamento entre os dois grandes rivais era muito cordial. Em 4 de fevereiro os Venezianos, após desfilarem pelas ruas do centro da cidade, foram até a caverna do Esmeralda, retribuir a visita recebida anteriormente.

No dia 10 de fevereiro o Esmeralda organizou uma festa no Clube Caixeiral, recebendo nova visita do Venezianos. Após a festa, os zé-pereiras das duas sociedades desfilaram juntos pelas ruas centrais da cidade.

Em 13 de fevereiro, o Venezianos inaugurou, na vitrine da Drogaria Ingleza, a fotografia da sua rainha Theresinha Piccardo, retratada pelo famoso fotógrafo Virgílio Calegari. No dia 17 foi a vez do Esmeralda inaugurar a foto de sua rainha, Laura Paes Brasil, na vitrine do atelier fotográfico de Jacintho Ferrari, responsável pela fotografia. Ida Marcusi era a rainha dos Vagalumes.

O zé-pereira era considerado o grande destaque das sociedades carnavalescas, atraindo a atenção da população da cidade. Chegava a ser considerado um símbolo de igualdade.

No dia 20 de fevereiro, sábado de carnaval, os bailes à fantasia tomaram conta da cidade. A comunidade italiana festejaria na sociedade Giovanni Emmanuel, na rua 7 de Setembro. A comunidade negra faria sua festa na Sociedade Aurora, na rua da Concórdia. Na Blitz, uma sociedade ciclistíca germânica, o Club Bello Horizonte organizaria sua festa. A sociedade germânica mais elitizada iria para o Turner Bund, onde a festa a fantasia exigia traje a rigor. O Club dos Vinte organizaria seu baile na Sociedade Leopoldina e o Grupo Infantil festejaria na rua Espírito Santo. Também ocorreriam bailes públicos em salões preparados na rua Doutor Flores.

Nos dias 19 e 20 vários vapores vindos de Montenegro, Cahy, Santa Cruz do Sul e outras povoações próximas à capital trouxeram grande número de pessoas para assistir aos desfiles de carnaval em Porto Alegre. Nos dias 21, 22 e 23 de fevereiro o serviço de bondes passaria por mudanças, devido aos desfiles, assim como o tráfego na rua Duque de Caxias seria suspenso.

O programa dos desfiles previa a seguinte apresentação: no domingo (21 de fevereiro) desfilariam Esmeralda, Filhos do Inferno, Petit Momo e Grupo Infantil. Na segunda-feira (22 de fevereiro) desfilariam Os Vagalumes e Sacca-Rôlhas. Na terça-feira (23 de fevereiro), a noite seria exclusiva para o Venezianos.

O roteiro dos desfiles variava de entidade para entidade e era muito maior que os atuais. O Esmeralda, por exemplo, começaria seu desfile no Velódromo (onde hoje fica o prédio da rádio da UFRGS), passaria pela Praça do Portão, rua Duque de Caxias, Marechal Floriano, Voluntários da Pátria, Doutor Flores, Andradas, General Canabarro, voltaria à rua dos Andradas, 7 de Setembro, Voluntários da Pátria, Praça 15 de Novembro e se dispersaria em frente à Prefeitura.

No dia 21, o Petit Momo abriu os desfiles. Sua apresentação foi preparada pelo cenógrafo Alfredo Tubino, tendo a frente os clarins e a Banda Oriental. A seguir o desfile assim se apresentava:
Esquadrão de Pierrots
Carro da rainha, representando a aurora boreal, com um monstro de sete cabeças.
Carro saudando o comércio de Porto Alegre
Carro com flores e nenufares vermelhos, feitos com cartonagem.
Camelo, transporte comercial na África, feito de massa de serragem
Carro em homenagem a Carlos Gomes, com Pery e Cecy.
Montanha de granito, tendo no cume as palavras Fé, Esperança e Caridade.
Uma viagem à Índia.
Montanha de Gelo e moradia dos esquimós.
Carro representando um sapo montanhês cavalgado por Petit Momo, tendo no peito a medalha oferecida pela comunidade da Cidade Baixa, no carnaval de 1908.
Carro do Zé Pereira.

Logo a seguir vieram os Filhos do Inferno:
Banda de clarins, fantasiados.
Carro da rainha.
Guarda de honra da rainha, fantasiada.
Carro da diretoria.
Carro triunfal, representando uma meia lua, com uma moça reclinada sobre a lua (o carro quebrou durante o desfile e a moça teve que descer).
Carro do balão dirigível, com duas moças na barquinha do balão.
Carros com fantasias.
Carro do Zé-Pereira.
Banda a cavalo.
Banda a pé.

Por fim, já com a chuva se anunciando, veio a Esmeralda, com os primeiros compassos da ópera de Aída. Sua estrutura de desfile foi:
Cavaleiros de vanguarda (6).
Banda de clarins, montada.
Carruagem da diretoria (presidente e vice).
Carruagem das diretotas-chefes.
Carruagens das representações dos clubes Vagalumes e Venezianos.
Carruagem da diretoria (secretário e tesoureiro).
Carro alegórico O Estandarte e a Fama, em forma de gôndola veneziana com uma rosa, dentro da qual uma fada segurava o estandarte.
A Fama e a Guarda de honra do estandarte.
Carruagens com moças fantasiadas.
Carro alegórico Fantasia Marcial, em forma de castelo militar, com um aspirante segurando a bandeira do Brasil.
Carruagens com moças fantasiadas.
Arautos anunciando a rainha.
Batedores do coche real.
Carro alegórico A Rainha, com o Palácio de Amílcar Barca, tendo nos degraus galeras, troféus, lanças e escudos de Cartago e no alto a rainha, representando Zobelda, sultana de Bagdá.
Esquadrão de honra da rainha.
Carruagens com moças fantasiadas.
Carro alegórico O Vulcão, representando uma montanha lançando fogo e fumaça e no sopé, de guarda, um mineiro.
Carruagens com moças fantasiadas.
Banda de músicos a pé.
Carro alegórico Flora-Ceres, com uma cúpula repleta de flores e frutos, sustentada por colunas de mármore, com os tronos das deusas Flora e Ceres.
Carruagens com moças fantasiadas.
Carro alegórico Amphitrite, com a filha de Oceano e Doris e esposa de Netuno deitada em uma concha cercada de algas e nenufares, com duas ninfas protegendo a deusa.
Carruagens com moças fantasiadas.
Carro do Zé-Pereira.

Os desfiles ocorreram sem grandes transtornos, embora uma das carruagens com moças fantasiadas do Esmeralda tenha se incendiado, sem feridos. Mas o transporte público foi alvo de críticas, pois o número de bondes para trazer o público ao centro e levar de volta aos bairros foi muito inferior ao necessário.

Os desfiles da segunda-feira foram cancelados devido à chuva. Mas no dia 23, terça-feira, o Venezianos desfilou pela cidade, com apresentação montada pelo cenógrafo Affonso Silva.
Comissão de frente (3 cavaleiros)
Guarda das Amazonas (6 amazonas)
Banda de clarins.
Carro com o estandarte do clube, conduzido por Otelo, o mouro de Veneza.
Guarda mourisca.
Carro egípicio, com a rainha do clube vestida como rainha egípcia e duas servas.
Esquadrão de guerreiros egípicios.
Gôndola veneziana, com moças e um rapaz que cantava uma canção.
Carros com moças e rapazes fantasiados.
Carro alegórico O Pombal, com uma moça que declamava versos.
Carros com moças e rapazes fantasiados.
Carro alegórico Fonte Maravilhosa, do qual se distribuíam panfletos com um soneto.
Carros com moças e rapazes fantasiados.
Esquadrão de meninos montados em pequiras.
Carro alegórico Noite de Núpcias, com um ninho formado por palhas e gravetos e dentro um casal de crianças. Panfletos com outro soneto eram distribuídos ao público.
Carros com moças e rapazes fantasiados.
Carro alegórico A Presa, que reproduzia um bosque onde uma donzela era ameaçada por uma serpente gigante. Também havia distribuição de panfletos com soneto explicando a cena do carro.
Carros com moças fantasiadas.
Carro alegórico Chapéu Chinês, com o Zé-Pereira e distribuição do número único do jornal Veneziano.

No dia 24, quarta-feira de cinzas, desfilou a sociedade Os Vagalumes.
Comissão de frente (3 pessoas).
Banda de clarins.
Esquadrão de honra da rainha (36 cavaleiros) vestidos à moda Luís XV.
Carro alegórico A Glória, com a rainha e três aias.
Carro com representantes da sociedade Esmeralda.
Guarda de honra da sociedade Esmeralda.
Carro da diretoria.
Carros com moças fantasiadas.
Carro alegórico Japonês.
Carros com moças fantasiadas.
Carro alegórico A Gôndola.
Carros com diretores fantasiados.
Carro alegórico com um urso branco cavalgando um vagalume.
Carro alegórico As Flores, com três moças fantasiadas.
Carros com diretoras fantasiadas.
Carro Livro Negro, com crítica aos clientes que não pagavam consultas médicas.
Carro Morto e Vivo, sátira ao caso Zé Fonseca (um personagem da época que desapareceu e a cada dia surgiam notícias nos jornais dando ele como morto ou como vivo).
Carros alegóricos Cura por Deus e Pai Celeste, criticando os curandeiros.
Carro alegórico com um ponto de interrogação.
Carros com sócios fantasiados.
Carro em formato de balão, com o Zé-Pereira.
Carro com um grande vagalume.
Guarda de honra formada por 40 meninos vestidos de marinheiro e com pequenas espingardas.

A seguir desfilou o Sacca-Rôlhas:
Dois batedores da Guarda de honra.
Banda do 1º Regimento da Brigada Militar, fantasiada.
Banda de clarins.
Esquadrão fantasiado.
Carro conduzindo a diretoria.
Carro em forma de concha, conduzindo a rainha da sociedade.
Guarda de honra.
Carro Pavilhão.
Carro com moças duas fantasiadas.
Carro A Cratera, com um rapaz fantasiado de Mefistofeles e quatro crianças.
Carro de crítica ao voto cumulativo, com um urso gigante cavalgando um pretendente ao cumulativo.
Carro de crítica ao telegrama número 9 (envolvendo a política internacional).
Carros de sócios fantasiados.
Carro em forma de garrafão, com o Zé-Pereira.

Na época não havia um juri nem um concurso de melhor corso. Mas o desfile mais elogiado pela imprensa foi o do Venezianos. Seus carros alegóricos, suas fantasias e a recepção do público ao desfile foram muito elogiados.

Algumas versões falam que haviam ocorrido atritos entre as duas grandes sociedades carnavalescas, e a ideia de fundar um clube de futebol a partir das mesmas seria uma tentativa de apaziguar os ânimos, que teriam se exaltado novamente na escolha das cores. Mas o que vemos na imprensa da época era uma relação muito amistosa entre as duas entidades, o que até torna mais compreensível que sócios de ambas se reunissem para fundar um clube de futebol. E dos relatos da época, nenhum fala que os representantes do Esmeralda tenham abandonado o clube após a escolha das cores.

De qualquer modo, dizem que nove meses depois do carnaval aumentam o número de bebês recém-nascidos. Mas em 1909 o mais belo filho do carnaval nasceu menos de dois meses depois, em 4 de abril: o Sport Club Internacional.

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