O campeonato porto-alegrense de 1928 começou com uma polêmica: Fagundes, atacante do Americano, trocou o clube pelo Cruzeiro. Na época, quando oficialmente vigorava o amadorismo, as transferências ocorriam sem qualquer compensação ao clube que perdia o atleta. O jogador simplesmente se desassociava do clube pelo qual atuava e se associava no novo clube. Para fazer frente ao chamado "profissionalismo marrom" e dar alguma segurança aos clubes de que não perderiam seus atletas por propostas financeiras de outras instituições esportivas, foi criada a Lei do Estágio, em 1917. Essa lei determinava que todo atleta que trocasse de clube dentro de uma mesma liga ficaria um tempo (que variou entre um ano e seis meses, durante os anos em que a lei existiu) atuando apenas em jogos amistosos.
O Cruzeiro, curiosamente, havia sido o clube que propôs a criação da lei, em 1917. Mas 11 anos depois tentava burlá-la. Em 27 de abril de 1928 a APAD (Associação Porto Alegrense de Desportos) estava reunida e iria debater o caso. Ao perceber que perderia a votação, o Americano retirou o recurso da pauta, decidindo encaminhá-lo diretamente à FRGD (Federação Rio Grandense de Desportos), entidade estadual a qual a APAD era filiada.
A APAD tinha uma Assembleia Geral marcada para o dia 30 de abril, uma segunda-feira. No sábado, 28, já começaram os boatos de que o caso Fagundes seria novamente debatido, que havia a proposta de suspensão do Americano, por ter pulado instâncias e recorrido direto à entidade estadual, e também a ideia de transferir o Gre-Nal do dia 3 de maio (feriado, na época), deixando o clássico sem data definida e realizando um torneio entre os clubes filiados para arrecadar recursos para a FRGD.
Em 30 de abril de 1928 a Assembleia Geral da APAD apresenta duas polêmicas: a inscrição de Fagundes, ex-atleta do Americano, pelo Cruzeiro, sem respeitar a Lei do Estágio, e a transferência do Gre-Nal de 3 de maio para o fim da temporada. A denominada, pelo Correio do Povo, “facção esquerdista”, formada por Internacional, Americano, São José e Ruy Barbosa, discordando do encaminhamento da direção da APAD (pró-Cruzeiro e transferência do Gre-Nal) abandona a reunião. Os “representantes direitistas” eram compostos por Grêmio, Cruzeiro, Ypiranga, Concórdia e Porto Alegre. Diante da crise, o presidente da APAD, tenente Armando Cattani, renunciou ao cargo. Em 1º de maio de 1928 foi dada continuação à reunião da APAD, sem os clubes rebeldes. Os clubes “direitistas” aprovaram a realização do Dia do Desporto em 3 de maio.
O Torneio do Dia do Desporto acabou não ocorrendo. A rodada do dia 6 de maio marcava as partidas Ruy Barbosa x Porto Alegre e Concórdia x São José. Logo surgiram boatos de que os "esquerdistas" Ruy Barbosa e São José não compareceriam aos jogos. Na noite anterior ao jogo, porém, os dois clubes distribuíram uma nota à imprensa afirmando que mantinham o protesto contra a APAD mas compareceriam a campo. Apesar do favoritismo dos clubes "direitistas", a vitória sorriu aos "esquerdistas". O Ruy Barbosa venceu por 3x2 e o São José por 3x1.
A rodada de 13 de maio marcava as partidas Cruzeiro x Americano e Ypiranga x Internacional. Os dois clubes envolvidos no caso Fagundes se enfrentariam, e o mais popular dos clubes "esquerdistas" também atuaria. Mas a falta de vontade da direção da APAD em encaminhar um recurso do Internacional contra a transferência do Gre-Nal levou à explosão da revolta dos "esquerdistas", que se recusaram a entrar em campo.
No dia 13, os "esquerdistas" disputaram dois amistosos na Chácara dos Eucaliptos. Na preliminar o São José venceu o Ruy Barbosa por 5x3 e o Americano bateu o Internacional por 7x2. Essa partida teria um outro marco na história do futebol gaúcho e colorado. O Internacional saiu vencendo por 2x0. Segundo o depoimento do ex-jogador Vasco (zagueiro do Americano nessa partida) ao jornal Diário de Notícias, em 21.04.1954, esta foi a primeira partida que ele ouviu foguetes comemorando gols em estádios de futebol, na capital gaúcha, logo após o 1º gol colorado, e também que ele viu as arquibancadas tomadas por bandeiras vermelhas.
Em 15 de maio de 1928, em reunião da APAD com a participação apenas dos clubes “direitistas”, a entidade decidiu declarar Internacional e Americano derrotados por WO. O vice-presidente da entidade, Paulo Dohms (sócio do Porto Alegre), e o 2º secretário, Orestes Leite (sócio do Internacional), renunciaram a seus cargos, descontentes com as decisões da entidade.
Na Assembleia Geral da APAD do dia 16 de maio foi eleito João Pibernat de Carvalho, na expectativa de que conseguisse pacificar o futebol da capital. No mesmo dia Fagundes, o pivô de parte da crise, viajava para Alegrete, com o objetivo de cuidar de sua saúde (e de sair do olho do furacão).
Para o dia 27 de maio foram marcadas duas partidas: Ypiranga x Concórdia e Ruy Barbosa x Cruzeiro. Mas com as questões políticas ainda não resolvidas, o confronto entre Ruy Barbosa e Cruzeiro foi cancelado. A partida entre Ypiranga e Concórdia, ambos da facção direitista, foi mantida. Mas era o destino que a partida não chegasse ao fim. Nos minutos finais do 1º tempo, com o jogo empatado em 1x1, o ponteiro-esquerdo Aima, do Ypiranga, teve fratura exposta ao receber um chute de Sarará, lateral do Concórdia. O fiscal da partida, Francisco Jeanselmi Filho, impediu que o jogo continuasse.
Mas a pacificação já estava bem encaminhada, e as equipes infantis de Internacional e Grêmio se enfrentaram amistosamente no mesmo dia 27, com vitória colorada por 5x4.
Novamente foi marcada uma partida para retomar o campeonato. No dia 3 de junho se enfrentariam Grêmio e Americano. Mas havia ainda o temor da partida não ser realizada. E o jogo realmente não ocorreu, mas a crise foi solucionada. Um dia antes, em 2 de junho, os representantes dos clubes se reuniram e chegaram a um acordo. Fagundes ficaria com o Cruzeiro, mas o campeonato seria retomado com o Gre-Nal adiado.
Pacificação do futebol da capital talvez tenha sido um termo exagerado. Os clubes chegaram a um acordo para se suportarem. No dia 7 de junho, na Baixada, foi disputado o Torneio Pacificação, com todos os 9 clubes filiados. O Internacional, já de início, decidiu enviar uma equipe reserva. No 1º jogo do torneio, entre Internacional e Ruy Barbosa, o adversário colorado se retirou de campo por discordar de uma decisão do árbitro. E o torneio não chegou ao fim, devido ao adiantado da hora.
O Gre-Nal da retomada do campeonato, no dia 10, também esteve longe de ser pacífico. O Internacional saiu na frente, perdeu a chance de ampliar ao desperdiçar um pênalti, sofreu a virada, empatou o jogo e sofreu um 3º gol. Aos 28' do 2º tempo, Maysonave, zagueiro gremista, cometeu dois pênaltis consecutivos, não marcados pelo árbitro Carlos Froelich, sócio do Concórdia. A partida ficou paralisada, com a reclamação de jogadores e torcedores colorados. No meio da confusão, o torcedor Farias Ortiz invadiu o campo e esbofeteou o juiz. A partida foi suspensa. Em 12 de junho de 1928, a APAD decidiu confirmar a vitória gremista, punindo Lampinha com 8 jogos de suspensão por agredir o juiz, e Ribeiro e Barros com 4 jogos, por ofenderem o árbitro. Em 4 de julho a APAD, reconhecendo que havia exagerado, reduziu as penas de Ribeiro e Barros para dois jogos de suspensão, e em 16 de julho de 1928 a entidade anulou a suspensão imposta aos atletas colorados Ribeiro, Lampinha e Barros. O atacante Barros, mesmo assim, profundamente indignado com a punição injusta, decidiu encerrar a carreira. Na mesma reunião do dia 16, a APAD estabeleceu as regras para a Lei do Estágio: o atleta que se transferisse de clube teria que passar um ano sem disputar partidas oficiais, contando a partir da sua última partida pelo clube anterior.
O ano de 1928 foi atípico para os clubes da capital e em especial para o Internacional. O Americano, apesar de ter perdido Fagundes, conquistaria o título, e seria bicampeão no ano seguinte. O Internacional, que de certa forma havia entrado na briga defendendo a Lei do Estágio, nunca foi um grande adepto dessa medida. Os históricos defensores da Lei do Estágio eram Grêmio e Cruzeiro, curiosamente clubes que criaram crises ao tentar burlar a lei. O Colorado, nesse período, enfrentou um grande debate interno, entre os defensores de um amadorismo puro, capitaneados por Antenor Lemos, que na época era o presidente da FRGD, e o grupo que já vislumbrava o profissionalismo logo adiante, que teve como líder o jovem Ildo Meneghetti. O confronto entre esses dois grupos abalou as estruturas do clube. Meneghetti saiu vitorioso, mas o confronto entre essas duas lideranças levou a um racha mais profundo no futebol da capital. Em 1929 a maioria dos principais clubes da cidade abandonaram a APAD e fundaram a AMGEA (Associação Metropolitana Gaúcha de Esportes Atléticos), que por iniciativa do Internacional aboliu a Lei do Estágio. Mas a FRGD não reconheceu a AMGEA, mantendo seu vínculo com a enfraquecida APAD.
Portanto, em 1928 o Internacional envolveu-se em um conflito onde parecia defender a Lei do Estágio, mas no ano seguinte foi o responsável pelo fim da própria lei. O Cruzeiro, criador da Lei em 1917, lutou contra ela em 1928, mas permaneceu fiel à APAD pró-estágio em 1929.
Internamente, o Colorado viu Antenor Lemos, uma liderança histórica que teve uma trajetória pública mais à esquerda (tendo aqui em vista a política riograndense da época) aliar-se à facção direitista, que burlando a Lei do Estágio bsucava reafirmá-la, enquanto Ildo Meneghetti, um político tradicionalmente conservador e de direita, surgiu como um dos líderes da ala esquerdista.
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