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terça-feira, 19 de maio de 2020

A adoção do profissionalismo no futebol em Porto Alegre e no Internacional



O futebol na capital gaúcha, como em quase todo o mundo, surgiu amador. Pessoas dispostas a praticar o esporte reuniam-se e fundavam clubes para jogar. Aos poucos, porém, a competitividade começou a dar espaço para que atletas qualificados, mas sem condições de dedicarem-se ao futebol de forma amadorística, começassem a receber "ajudas" para jogar, que aos poucos tornaram-se pagamentos regulares, até oficializar-se o profissionalismo.
Ainda em 1917, antes do futebol na capital chegar ao seu décimo torneio, os clubes já demonstravam preocupação com o profissionalismo. A Federação Sportiva Riograndense (FSR), que comandava o futebol porto alegrense, no dia 13 de fevereiro de 1917 aprovou a Lei do Estágio, pela qual um atleta só poderia atuar no campeonato se já residisse na cidade a pelo menos 30 dias antes da partida. No dia 2 de abril, por iniciativa do Cruzeiro, a lei foi ampliada: jogadores estrangeiros só poderia atuar em partidas oficiais se tivessem pelo menos um ano de residência em Porto Alegre. O Grêmio, que havia acabado de receber três atletas uruguaios, sentiu-se prejudicado e abandonou a federação, ficando um ano sem disputar partidas oficiais. Aurélio Py, dirigente gremista que era o presidente da FSR, renunciou ao cargo.

A existência de várias ligas na capital possibilitava o assédio dos clubes da liga principal aos melhores atletas de outras ligas. Em julho de 1919, a Federação Porto Alegrense de Foot-Ball (FPAF) acusou a Associação Porto Alegrense de Desportos (APAD, que era a entidade principal da cidade) de profissionalismo, permitindo que seus clubes aliciassem atletas das entidades filiadas à Federação. Lewis, do Americano, e Soló, do Municipal, se transferiram para o Grêmio com os campeonatos das duas associações em andamento. (1)

Outro aspecto da Lei do Estágio é que, em caso de um jogador trocar de clube dentro da liga, precisaria ficar seis meses sem disputar partidas oficiais. Em 1920, Poly e Costa, atletas do Porto Alegre, ingressaram no Grêmio, que pretendia utilizá-los em jogos oficiais. A Federação Riograndense de Desportos (FRGD), entidade estadual, presidida pelo gremista Aurélio Py passou por cima da APAD e autorizou o Tricolor a utilizá-los. A APAD não aceitou a interferência e puniu o Grêmio com a perda de pontos em uma partida de 2º quadros, onde Costa havia atuado. A FRGD desfiliou a APAD, substituindo-a pela Associação Porto Alegrense de Football (APAF), criada pelo Grêmio.

Na década de 1920, o chamado "profissionalismo marrom" tornava-se cada vez mais comum. Em 26 de maio de 1925, a APAD decidiu tira o ponto do Internacional no empate em 3x3 no Gre-Nal de 25 de maio, sob a alegação de que o zagueiro colorado Grant residia em Canoas e seria profissional. Em 16 de junho, porém, o Conselho da APAD aceitou os argumentos da defesa colorada, de que Grant tinha residência em Canoas e Porto Alegre, e que trabalhava no comércio da capital, jogando de forma amadora. Por 3 votos a 1, o clube recebeu o ponto de volta.

Em 14 de maio de 1927, o Porto Alegre pediu a abertura de um inquérito para investigar as acusações de que Luiz Carvalho, atacante gremista, seria profissional, mas por 3 votos a 2, o Conselho da APAD negou o pedido. Outro atleta que despertava suspeitas de profissionalismo era o atacante uruguaio Ross, que jogava no Internacional. Ele chegou ao clube no início de 1927, já tendo em seu currículo a expulsão da liga de Cachoeira do Sul, em 1925, por acusação de profissionalismo. A mesma acusação marcaria sua passagem pelo futebol passo-fundense, em 1926. Moeller, goleiro que trocou o Novo Hamburgo pelo Internacional, também foi suspeito de profissionalismo. 

O ano de 1928 ficaria marcado por várias atitudes que demonstravam claramente uma discordância entre o discurso amadorista dos cartolas e a prática de pagamento de atletas. O Porto Alegre anunciava a formação de um esquadrão para disputar o campeonato. Tirou o goleiro Lara, Adroaldo e Nenê, do Grêmio, trouxe Risada do Guarany de Cruz Alta, Ernesto Delvaux do 14 de Julho de Passo Fundo  e chegou a sonhar com Araken, do Santos. O Cruzeiro reforçou-se com Javel, do Gaúcho de Passo Fundo. E o Grêmio tirou Moeller do Internacional, para substituir o lendário Lara. Ainda ocorreria uma polêmica transferência de Fagundes do Americano para o Cruzeiro.

No Internacional, no ano de 1928 uma grave crise interna surgiu entre a ala comandada por Antenor Lemos, defensor de um amadorismo puro, e outra que passou a ser liderada por Ildo Meneghetti, que já projetava uma transição para o profissionalismo. A disputa refletiu-se no campo, onde o clube teve vários reveses. Em meio à crise política, a iminência da perda do campo da Chácara dos Eucaliptos teria levado inclusive a Antenor Lemos propor o fechamento do clube. Alguns sócios chegaram a abandonar o clube, mas o grupo de Meneghetti conseguiu o controle da instituição. Os sócios que haviam saído regressaram e o clube intensificou a busca por jogadores que recebiam para atuar, como Dirceu Alves, o primeiro atleta reconhecidamente negro a atuar no Internacional.

Ainda em 1928, a APAD tentou reforçar o combate ao profissionalismo. Em 16 de julho, alterou a Lei do Estágio, ampliando para um ano o período em que um jogador que trocasse de clube teria que ficar disputando apenas amistosos. A Lei do Estágio oporia novamente duas lideranças coloradas: Ildo Meneghetti, então presidente do clube, e contrário à lei, e Antenor Lemos, presidente da FRGD, e defensor da lei. Por iniciativa colorada, os principais clubes da cidade abandonaram a APAD e fundaram a Associação Metropolitana Gaúcha de Esportes Atléticos (AMGEA), que aboliu a Lei do Estágio. A briga entre os dois dirigentes chegou ao ponto da Assembleia Geral do Internacional, em 23 de novembro de 1929, declarar Antenor Lemos o "maior inimigo que o clube jamais teve".

No início dos anos 1930, o profissionalismo "disfarçado" espalhou-se pelos clubes. Atletas da comunidade negra eram contratados por Americano, Concórdia, Porto Alegre e Internacional. O Colorado contratou Venenoso, atacante do Ideal de Pelotas, e Tupan, que já havia jogado no Concórdia e no Porto Alegre.

Em 1931, o futebol tornou-se oficialmente profissional na Argentina. No ano seguinte, no Uruguai. Em 1933 o futebol tornou-se oficialmente profissional em São Paulo e no Rio de Janeiro. O assédio dos clubes dessas praças sobre os atletas porto alegrenses começava a preocupar.

Em 1932, o Nacional de Montevidéu tentou levar Félix Magno e Pereira do Internacional. Em 1934, o Flamengo levou Alfredo Delvaux e tentou levar Javel, do Internacional. No mesmo ano, depois da Copa do Mundo, o Peñarol tentou levar o zagueiro Luiz Luz, do Americano. Em 1935, o Boca Juniors queria o zagueiro colorado Natal. Em 1936, o Flamengo ofereceu um salário de 500$000 e luvas de 6:000$000 (dois contos já ao assinar o contrato) para Natal, que só permaneceu no clube porque o Internacional ofereceu a seu zagueiro uma casa de 8:000$000. O Flamengo também tentaria a contratação de Luiz Luz, já no Grêmio, mas acabaria levando mesmo Natal, no início de 1937.

Mas a essa altura, mesmo em Porto Alegre, salários e valores de contratações não eram mais escondidos, embora as relações ainda fossem diferentes das atuais. Em abril de 1936, o Juventude pediu ao Internacional a devolução do passe de Florentino Severo, pelo qual o Colorado pagou 950$000.

Em 29 de abril de 1937, em um regime ainda oficialmente amador, o Internacional estabeleceu multas para jogadores que faltassem a treinos: 10$000 por falta para quem ganhava até 300$000, e 20$000 por falta para quem ganhava mais de 300$000.

Em fevereiro de 1937, os clubes paulistas profissionais iniciam tratativas com a CBD, amadora, para a pacificação do futebol brasileiro. Mas no Rio Grande do Sul a situação iria esquentar. Em abril de 1937, a dupla Fla-Flu convidou a dupla Gre-Nal a aderir ao futebol especializado (profissional) (2). Em maio, o presidente colorado viajou ao Rio de Janeiro, e os boatos de que a dupla Gre-Nal iria se profissionalizar aumentam, assim como declarações de cartolas colorados, como Milton Soares (presidente em 1936) e Edelberto Mendonça (presidente em 1927), ameaçando abandonarem suas carreiras esportivas, caso o clube adotasse o profissionalismo. No dia 14, o presidente colorado Iracy Salgado Freire, deu uma entrevista à Federação, desconversando sobre o assunto. (3)

As negociações prosseguiram, porém, graças à iniciativa de Luiz Pinto Chaves Barcellos. As 13 horas do dia 23 de junho, no escritório comercial da firma Chaves Barcellos e Cia. Ltda, Internacional e Grêmio assinaram sua adesão ao futebol especializado, em um convênio com a liga carioca e a Federação Brasileira de Futebol (FBF). (4) No mesmo dia, Cruzeiro, São José e Força e Luz aderiram ao futebol especializado.

A AMGEA, que organizava o campeonato da cidade, ficou dividida. Cinco clubes aderiram ao profissionalismo, mas dois (Americano e Porto Alegre) permaneceram fieis ao amadorismo. O campeonato, já em andamento, foi cancelado, e dois novos campeonatos foram organizados, pela AMGEA "especializada" e pela AMGEA "cebedense", que foi reforçada pelo Villa Nova, pelo Renner e pelo Novo Hamburgo.

Em 28 de junho de 1937, um grupo de conselheiros, descontentes com a adesão do clube ao futebol profissional, renunciou aos seus cargos. Eram eles Luiz Azevedo Júnior, Gomercindo Barcelos, Luiz Azevedo Maia, Luiz Sales, Pedro Moreira, Miguel Genta, Manoel Carriconde, Jarbas de Lorenzi Costa e Jorge Portela. De forma isolada, em um ofício menos duro do que o produzido pelos demais conselheiros, também renunciou o conselheiro Átila do Amaral. No dia 7 de julho de 1937, Miguel Genta seria eleito 1º vice-presidente da AMGEA “cebedense”. Mais tarde, a maioria destes dissidentes voltariam ao clube. Miguel Genta seria presidente do Internacional em 1941, e Milton Soares em 1942 e 1950.

A primeira partida oficialmente profissional da cidade ocorreu em 11 de julho de 1937, na abertura do campeonato, entre Internacional e Força e Luz, na Timbaúva. O Internacional venceu por 5x2, mas Elesbão, do Força e Luz, teve a honra de marcar o primeiro gol profissional de Porto Alegre e do Rio Grande do Sul.

O futebol gaúcho ficou dividido por duas temporadas, mas aos poucos clubes e ligas do interior iam aderindo ao profissionalismo. Em 1939, a FRGD decidiu reconhecer o profissionalismo, aceitando no campeonato estadual clubes amadores e profissionais. Na capital, a AMGEA voltou a ser uma única entidade. Em 1941, a FBF foi extinta e seus clubes voltaram a fazer parte da CBD. No ano seguinte, a FRGD criou campeonatos distintos para amadores e profissionais. mas as polêmicas continuariam.

Entre os clubes da capital, o Grêmio teve dificuldades de adaptar-se ao profissionalismo. Em janeiro de 1940, o clube anunciou que pretendia reduzir o número de atletas e chegou a divulgar que ficaria apenas com onze jogadores. Em 1941, o clube tentou encabeçar um movimento de retorno ao amadorismo, que não teve apoio nas demais entidades. No final de 1941, o Grêmio acusou o jogador colorado Ary, que disputou a final do campeonato municipal de amadores, de ser profissional, por ter atuado nessa categoria pelo Bancário de Pelotas.

Um novo movimento de retorno ao amadorismo foi tentado por alguns dirigentes gremistas, quando o clube anunciou a contratação de Tesourinha, em 1952, seu primeiro atleta reconhecidamente negro. Mas dessa vez não conseguiu ter apoio significativo nem dentro do clube.

O profissionalismo tornou o futebol mais competitivo e permitiu a atletas das camadas baixas da sociedade praticarem o esporte e saírem do anonimato. Nomes como Leônidas e Domingos da Guia, no futebol nacional, e Tupan e Tesourinha, no futebol gaúcho, foram possíveis apenas graças ao profissionalismo. Por outro lado, o profissionalismo decretou o fim das ligas e clubes operários e da comunidade negra.

(1) Correio do Povo, 30 de julho de 1919, p. 2.
(2) Correio do Povo, 27 de abril de 1937, p. 14; Correio do Povo, 30 de abril de 1937, p. 17.
(3) A Federação, 15 de maio de 1937, p. 4.
(4) A Federação, 24 de junho de 1937, p. 4.

Para quem gosta do assunto, indico três livros que tratam, entre outros assuntos, da profissionalização do futebol e da inserção das camadas populares no mesmo, na Inglaterra e no Rio de Janeiro.

MURRAY, Bill. Uma história do futebol. São Paulo, Hedra, 2000.
PEREIRA, Leonardo Affonso de Miranda. Footballmania: uma história social do futebol no Rio de Janeiro, 1902-1938. Rio de Janeiro, Nova Fronteira, 2000.
SILVA, Francisco Carlos Teixeira da; SANTOS, Ricardo Pinto dos (org.). Memória social dos esportes: futebol e política, a construção de uma identidade nacional. Rio de Janeiro, Mauad/FAPERJ, 2006.

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