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terça-feira, 6 de abril de 2021

Cem Mil Negrinhos


No dia 6 de abril de 1969, data da inauguração do Gigante da Beira-Rio, o jornal Zero Hora publicou um suplemento especial sobre o evento. Vivíamos o período mais sombrio da ditadura militar, mas em um belíssimo texto o jornalista Mendes Ribeiro conseguiu, ao mesmo tempo, exaltar a inauguração do estádio, saudar a democracia e criticar a ditadura.

Eis o texto:

Cem Mil Negrinhos

Cem mil negrinhos, vestindo vermelho e agitando bandeiras. E nem um só era um negrinho rico. Em cada negrinho um sorriso muito branco. Cem mil sorrisos brancos. E todos orgulhosos, e todos reis, esquecidos do que a vida não lhes dera em dinheiro, em oportunidade, em quase tudo. E depois, onze deles pisando a graminha fofa, nova, caprichosamente desenhada, como caprichoso era o sonho que ia em frente. E o jogo começava. E a bola branca, de pé em pé, como em passe de mágica, tinha rumo certo. E os negrinhos do campo chegavam às redes e, os que estavam esparramados por toda a parte, riam ainda mais seus cem mil sorrisos absolutamente iguais.

Quando o jogo ia em meio, tudo ficou quieto, tudo ficou mudo. O dia se fez noite e, também de surpresa, cem mil sóis ofuscaram os cem mil negrinhos. Eram as luzes. Foi aí que, lentamente, um dos tantos se encaminhou para a tribuna. O momento era solene e, foi solenemente que ele começou. E disse que estava entregando a casa aos seus verdadeiros donos. Que tinha um grande respeito e gratidão pelos comandantes do feito. Mas que via, em cada tijolo, em cada muda de grama, o esforço do homem comum, do anônimo que não haveria de ganhar placas, de receber honrarias, de passar à posteridade. Disse tudo de forma solene, mas simples. E depois de dizer, descerrou a placa: "Ao povo do Rio Grande, o Internacional, agradecido, entrega a Casa do Povo".

Alguém protestou. Casa do Povo? E os legislativos, as câmaras, as assembleias? Cem mil negrinhos responderam em coro dizendo da autenticidade da escolha. Aquele estádio era a consagração de um candidato. Cada tijolo acrescentado um voto perpétuo de confiança. Ali estava um palácio erguido sem impostos, pelo esforço comunitário a que ninguém fora obrigado. Um jornal que o jornaleiro vendera pensando no Inter, uma camisa que o homem da rua não havia usado pois sem camisa, qual o homem da lenda, era mais feliz e mais colorado, e assim por diante.

Cem mil negrinhos deixaram a casa nova para outros cem mil negrinhos entrarem, depois. Não há conta os donos que aquelça casa tem. E todos, os que saíam e os que entravam, nas camisas vermelhas traziam um distintivo. O distintivo era mais do que um símbolo. Era um desafio. Desafio que os incrédulos lançaram ao povo para, mais uma vez ficarem sabendo, definitivamente, de que com o povo não se brinca. Do brinquedo dos outros, da bóia cativa, eles fizeram um ideal e o ideal enfeitou uma cidade, orgulhou um Estado, assombrou um país.

Acordei. No dorm-desperta de após sono, a procissão dos negrinhos continuava. E não tentei colocar brancos, ali. Eu gosto de gente, preta, amarela, pouco importa. E os pretinhos de meu sonho, mais do que ninguém, representavam esse povo sofrido, de noites insones, de esperanças muitas e de dinheiro pouco que fez o Beira-Rio, a Bóia Cativa, a Casa do Povo. E, palavra, sonhos assim não deveriam terminar.















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