No dia em que se completa 6 anos do falecimento do escritor uruguaio Eduardo Hughes Galeano, uma homenagem a esse grande nome da cultura latino-americana, com um de seus textos sobre futebol, uma de suas grandes paixões.
O Torcedor
Uma vez por semana o torcedor foge de casa e vai ao estádio.
Ondulam as bandeiras, soam mas matracas, os foguetes, os tambores, chovem serpentinas e papel picado: a cidade desaparece, a rotina se esquece, só existe o templo. Neste espaço sagrado, a única religião que não tem ateus exibe suas divindades. Embora o torcedor possa contemplar o milagre, mais comodamente, na tela de sua televisão, prefere cumprir a peregrinação até o lugar onde possa ver em carne e osso seus anjos lutando em duelo contra os demônios da rodada.
Aqui o torcedor agita o lenço, engole saliva, engole veneno, come o boné, sussura preces e maldições, e de repente arrebenta a garganta numa ovação e salta feito pulga abraçando o desconhecido que grita gol ao seu lado. Enquanto dura a missa pagã, o torcedor é muitos. Compartilha com milhares de devotos a certeza de que somos os melhores, todos os juízes estão vendidos, todos os rivais são trapaceiros.
É raro o torcedor que diz: "Meu time joga hoje". Sempre diz: "Nós jogamos hoje". Este jogador número doze sabe muito bem que é ele quem sopra os ventos de fervor que empurram a bola quando ela dorme, do mesmo jeito que os outros onze jogadores sabem que jogar sem torcida é como dançar sem música.
Quando termina a partida, o torcedor, que não saiu da arquibancada, celebra sua vitória, que goleada fizemos, que surra a gente deu neles, ou chora sua derrota, nos roubaram outra vez, juiz ladrão. E então o sol vai embora, e o torcedor se vai. Caem as sombras sobre o estádio que se esvazia. Nos degraus de cimento ardem, aqui e ali, algumas fogueiras de fogo fugaz, enquanto vão se apagando as luzes e as vozes. O estádio fica sozinho e o torcedor também volta à sua solidão, um eu que foi nós; o torcedor se afasta, se dispersa, se perde, e o domingo é melancólico feito uma quarta-feira de cinzas depois da morte do carnaval.
Este texto faz parte do livro Futebol ao sol e à sombra.
No livro Fechado por motivo de futebol, também de Galeano, há uma entrevista do autor ao jornal El Grafico, concedida em 1995, logo depois da publicação de Futebol ao sol e à sombra. Uma das perguntas é muito interessante:
- Por que escreveu um livro sobre futebol?
- Porque o futebol é o espelho do mundo e em meus livros eu me ocupo da realidade. A realidade é uma senhora muito louca, que fala de dia e de noite tmabém; em suas horas de vigília e enquanto dorme ou se faz de adormecida; nas horas do sonho e do pesadelo. Eu sou um ouvinte das suas vozes; quero escutar o que ela conta para contar para os outros. Por isso me interessa a realidade que foi, a que é e a que será. E o futebol é uma parte fundamental da realidade, sempre achei muito indignante que a história oficial ignorasse essa parte da memória coletiva que é o futebol em países como os nossos. Os livros de história do século XX nunca mencionaram o futebol, jamais, não existe; e foi fundamental para as pessoas de carne e osso. Como que não existe?
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