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sábado, 27 de fevereiro de 2021

HISTÓRIA - Start, o time da fábrica de pão que enfrentou o nazismo.


O Dinamo de Kiev, fundado em 13 de maio de 1927, era o principal clube da Ucrânia e um dos principais da União Soviética, nos anos 1930. Em 1935, as associações de trabalhadores da Bélgica e da França convidaram a Seleção da Ucrânia para enfrentar clubes locais. E essa seleção foi formada com sete jogadores do Dinamo. O principal confronto foi contra o Red Star de Paris, que diferente dos demais adversários era um clube profissional, que disputava o campeonato francês. Apesar da expectativa de uma goleada francesa, a Seleção Ucraniana venceu por 6x1.


Em 1936, no primeiro campeonato soviético, o Dinamo Kiev estreou em casa contra o poderoso Dinamo Moscou. A derrota por 5x1 atrapalhou os planos do clube ucraniano, que terminaria a temporada como vice-campeão, perdendo o título exatamente para o clube moscovita. Já no campeonato ucraniano, classificatóriopara o campeonato soviético, o Dinamo Kiev levantou a taça, batendo o Dinamo Odessa por 6x0, na final. Nos primeiros anos de campeonato o clube não chegou ao título, embora mais tarde se tornasse o maior vencedor do campeonato soviético.

Na temporada de 1941 o Dinamo Kiev não teve um bom começo. Em 22 de junho de 1941, quando começou a Operação Barbarossa (a invasão alemã à União Soviética), o clube ocupava a 8ª colocação, com dois jogos a menos que vários adversários. Seu último jogo ocorreu em 16 de junho, derrota por 2x0 para o Spartak Kharkov, fora de casa. O campeonato soviético ainda teria duas partidas no dia 24, dois dias depois de começado o conflito.

Vários jogadores ucranianos se apresentaram como voluntários nos postos de recrutamento do exército, entre eles o goleiro Nikolai Trusevich, ídolo do Dinamo Kiev. Nos primeiros dias não foram aceitos voluntários, Mas à medida em que as forças nazistas avançaram vários atletas foram convocados. Um deles, Alexei Dubovsky, morreu nos combates em defesa da cidade. Trusevich foi ferido na perna, em uma das várias operações que fez inflitrando-se nas linhas inimigas e trazendo consigo um prisioneiro.

Os jogadores que não foram convocados para o Exército Vermelho ficaram executando outras funções na cidade. Com os alemães às portas da cidade, alguns deles se uniram a grupos de guerrilheiros que resistiam ferozmente aos nazistas. O grupo de Nicolai Makhinya era pequeno, mas causou inúmeras baixas aos invasores. Mas apesar da resistência, Kiev caiu em 19 de setembro de 1941.

Entre 29 e 30 de setembro, os nazistas massacrariam mais de 30 mil judeus ucranianos na ravina de Babi Yar. Entre eles, Lazar Kogen, jogador do Dinamo, e Lev Chernobylsky, árbitro de futebol e ex-treinador do Dinamo.

Aos sobreviventes, restava recomeçar a vida. E um tcheco nascido na Morávia, Josef Kordik, recebeu a direção da Padaria nº 3. Kordik havia lutado no exército austro-húngaro durante a I Guerra Mundial. Ferido e feito prisioneiro, acabou criando raízes em Kiev. Falando alemão fluentemente, ele apresentou-se às autoridades nazistas como austríaco que ficara em Kiev contra a vontade. Torcedor do Dinamo, Kordik descobriu alguns jogadores entre os prisioneiros de guerra e começou a empregá-los na fábrica de pão. Além dos jogadores do Dinamo, outros três atletas do rival Lokomotiv também foram empregados.

Na primavera de 1942, Georgi Shvetsov, um ex-jogador do Lokomotiv, que no início da guerra desertou do Exército Vermelho e depois passou a colaborar com os nazistas, criou um clube de futebol chamado Rukh, vinculado ao nacionalismo de extrema-direita ucraniano. O Rukh passou a mandar seus jogos no Estádio do Dinamo, rebatizado Estádio Ucraniano. Shvetsov tentou atrair os jogadores da Fábrica de Pão nº 3, em troca de melhorias significativas de vida, mas nenhum dos ex-atletas do Dinamo ou do Lokomotiv aceitaram o convite. Apenas dois desconhecidos jogadores da Fábrica de Pão, Nikolai Golembiovsky e Lev Gundarev aceitaram a proposta. Os dois se destacariam mais tarde na repressão aos resistentes ao nazismo. Gundarev comandou expedições contra apartamentos de familiares de jogadores do Dinamo que ainda estavam resistindo, na guerrilha ou no Exército Vermelho, e Golembiovsky colaborou com os nazistas em interrogatórios da população local. Quando Shvetsov conseguiu autorização dos nazistas para organizar uma temporada de futebol, os rapazes da Padaria nº 3 deram um nome ao seu time: FC Start.

A partida inicial foi marcada para 7 de junho de 1942, entre Rukh e Start. Trusevich e Putistin haviam encontrado entre os escombros de uma casa um jogo de uniformes vermelho e branco. Trusevich discursou frente aos seus companheiros: "Não temos armas, mas podemos batalhar pela nossa própria vitória no gramado. Desta vez, os membros do Dinamo e Lokomotiv vão jogar com a mesma cor, a cor da nossa bandeira. Os fascistas vão ver que essa cor não pode ser derrotada".

Os jogadores do Rukh estavam melhor alimentados, tinham folga para treinar e uniforme completo. Já no Start, tirando as camisetas, o resto eram improvisado. Os calções eram feitos com calças cortadas, e tirando um jogador que tinha chuteiras, os outros usavam botas de trabalho ou sapatos comuns. Mesmo assim o Start venceu por 7x2.

Humilhado, Shvetsov conseguiu que as autoridades nazistas proibissem o Start de usar o Estádio Ucraniano. Assim o time não poderia mais treinar ou jogar. Mas Kordik conseguiu das mesmas autoridades uma licença para usar o pequeno Estádio Zenit. Foi nesse local que, em 21 de junho, o Start bateu o time da guarnição húngara por 6x2. Dias depois, no mesmo Zenit, o Start bateu a guarnição romena por 11x0. A cada vitória, o Start se tornava mais popular na cidade.

Os alemães não se preocupavam com o Start, pois suas vitórias haviam ocorrido sobre os "inferiores" ucranianos, húngaros e romenos. Mas no dia 17 de julho o adversário era o PSG, equipe de uma unidade militar alemã. E o Start venceu novamente, 6x0. O jornal Nova Ukrainski Slovo, ligado à extrema-direita ucraniana pró-nazista, e apoiador do Rukh, assim descreveu o jogo: "O Start, como todos sabem, é composto por jogadores do antigo Dinamo, um time profissional, e por esta razão deveríamos exigir e esperar de sua parte muito mais do que eles mostraram em campo."

A vitória do Start acendeu a luz amarela entre os alemães. A população da cidade se unia em torno dos atletas, vendo neles uma vitória sobre os opressores do Eixo. Para piorar, até a guarnição romena foi "contaminada" pelo bom futebol do Start e torcia abertamente pelo time. Mas os alemães esperavam que o forte MSG Wal, equipe do exército húngaro, batesse o Start e acabasse com sua popularidade. No dia 19 os dois times se enfrentaram. O MSG teve um jogador lesionado logo no início da partida, e não existiam substituições na época. Assim, o Start venceu por 5x1. Esse deveria ser o último jogo da temporada do Start, mas os húngaros pediram uma revanche e as autoridades nazistas, confiando em uma vitória, concordaram.

No dia 26 de julho, um grande público compareceu ao Estádio Zenit. Com onze atletas em campo, o MSG era um adversário forte, mas ainda no 1º tempo o Start abriu 3x0. Na 2ª etapa, porém, os atletas da fábrica de pão, vindo de um turno de trabalho de 24 horas, sentiram o cansaço e sofreram dois gols, mas seguraram a vitória por 3x2. No mesmo dia, no Estádio Ucraniano, que recebia um público formado quase exclusivamente por militares de folga, o Flakelf, time composto por pilotos e membros das guarnições anti-aéreas da Luftwaffe, goleou o Rukh.

O Flakelf era considerado o melhor time das unidades militares alemãs e o favorito para vencer o Start. E assim, no dia 6 de agosto foi marcado um confronto entre o Flakelf e o Start. A partida foi marcada para uma quinta-feira, impedindo que a maioria dos ucranianos comparecesse, formando uma maioria de torcedores alemães. Mas em campo o Start teve um de seus jogos mais fáceis e venceu por 5x1, apesar da violência dos jogadores alemães.

As autoridades nazistas não ficaram nada contentes com o resultado e marcaram uma nova partida, para o dia 9 de agosto, domigo. Milhares de panfletos foram distribuídos, divulgando a partida. O comando alemão queria uma vitória definitiva, diante da torcida ucraniana. Alguns reforços foram trazidos às pressas para a equipe da Flakelf e o árbitro da partida, que até então vinha sendo indicado pelos romenos, seria alemão. Outra novidade foi a presença maciça de soldados alemães com cães fazendo a "segurança" do jogo. O estádio recebeu o maior público da temporada de jogos, e logo ficou claro que mais uma vitória do Start desencadearia uma onda de repressão.

No vestiário, os jogadores do Start receberam a visita do juiz da partida, um oficial da SS que falava russo fluente. Além de se apresentar, solicitou que os ucranianos saudassem os alemães com um "Heil Hitler". Soldados romenos também foram ao vestiário levar comida e desejar boa sorte. Torcedores recomendavam cautela diante dos alemães, e um grupo de jogadores do Rukh, com Gundarev à frente, sugeriram que o Start perdesse o jogo, já havia feito sua parte e não deveria provocar os alemães.

Ao entrarem em campo, as equipes encontraram um ar tenso. Como afirma o jornalista Andy Dougan, que pesquisou a fundo esses acontecimentos: "A competição era entre o Flakelf e o Start, mas aos olhos dos dois grupos de espectadores era também entre a Alemanha e a União Soviética, entre o fascismo e o bolchevismo."

Os alemães formaram em frente às autoridades e bradaram o "Heil Hitler". Os jogadores do Start foram à frente do palanque. A multidão em silêncio, esperando se eles fariam a saudação nazista. Lado a lado, os jogadores erguem o braço, mas quando parecia que iam fazer a saudação nazista, os dobraram sobre o peito e gritaram "Fizculthura!", o brado dos esportistas soviéticos.

Com a bola rolando, ficou claro que tudo estava organizado para a vitória dos nazistas. Trusevich, em cada saída na bola, era atingido pelos alemães, sem que o juiz marcasse falta. Em um lance, um jogador alemão chutou sua cabeça, deixando-o incosnciente por alguns instantes. Sem reserva, ele voltou ao jogo, mesmo tonto, e no lance seguinte o Flakelf abriu o placar. Os alemães batiam mais que no jogo anterior, sem serem molestados pelo juiz. Qualquer tentativa de ataque ucraniano era parada com violência, sem que o juiz marcasse falta. Foi então que Kuzmenko agiu. Acostumado a treinar com bolas três vezes mais pesadas que o normal, recebeu um passe no círculo central, avançou uns metros e, antes que fosse atingido desferiu um chute forte para empatar o jogo. Com os alemães ainda traumatizados com o gol, o ponteiro Goncharenko avançou a dribles, passando pelos marcadores sem ser derrubado e entrando no gol com a bola. Ainda no 1º tempo, Kuzmenko cruzou para Goncharenko. Com medo que o juiz marcasse impedimento, ele recuou dois passos antes de ir na bola e chutar para fazer 3x1.

A torcida ucraniana, eufórica, cantava e zombava dos dirigentes nazistas. Soldados com cães avançaram sobre os torcedores, enquanto soldados de folga atacavam os ucranianos em outro setor do estádio. No vestiário do Start, Georgi Shvetsov, dono do Rukh, compareceu e solicitou que eles deixassem os alemães vencerem, como forma de garantir a segurança de todos. Em seguida, um outro oficial da SS que dominava o russo foi no vestário, disse que eles haviam feito um grande primeiro tempo, que haviam impressionado os alemães, mas que não podiam esperar vencer, e pediu que avaliassem as consequências, sozinhos, antes de retornarem ao campo. 

Ao voltarem a campo, não existia mais grade de proteção separando a torcida. Os soldados alemães, agrupados, faziam o isolamento do campo. A tensão era grande e os próprios alemães temiam uma revolta da torcida. Os dois times marcaram dois gols, mas em nenhum momento o Flakelf ameaçou a vitória do Start. Perto do final do jogo, o jovem Klimenko, empolgado, esqueceu o pacto de não provocarem os alemães. Ele driblou a defesa, o goleiro, e parou a bola em cima da linha. Em seguida, ele entrou no gol, virou-se e deu um balão, recolocando a bola em jogo. O juiz imediatamente encerrou a partida, antes do tempo, irritado com a humilhação. Na saída de campo os alemães soltaram os cães na torcida e fizeram disparos para o ar.

Apesar do temor, nada aconteceu com os jogadores do Start, que voltaram ao trabalho e aos treinos. Pouco depois, souberam que haveriam uma nova partida, dia 16 de agosto, contra o Rukh. Sem o mesmo público e a mesma empolgação, o Start venceu por 8x0. E aí começaram os problemas. Os alemães estavam preocupados com a popularidade do Start, cujos atletas viraram herois da população. Seus aliados romenos e húngaros haviam torcido abertamente para o Start no jogo contra o Flakelf. E Shvetsov colcou agota que faltava para entornar o copo. Disse aos alemães que cada dia que os atletas caminhavam na rua era a propaganda comunista avançando. Assim, foi resolvido que os jogadores seriam presos e levados para a sede da Gestapo, na rua Korolenko.

Korotkykh, oficial da NKVD, após ser preso, foi separado dos demais companheiros. Tendo um posto alto dentro do Partido Comunista e do Exército Vermelho, tornou-se o principal alvo das torturas dos nazistas. Foi morto após 20 dias de tortura. Dois dias depois, os outros jogadores foram transferidos para o campo de concentração de Siretz.

Em 23 de fevereiro de 1943, guerrilheiros soviéticos incendiaram uma fábrica de trenós motorizados do exército nazista, em Kiev. Como represália, o comandante do campo de Siretz decidiu, no dia seguinte, matar um a cada três homens prisioneiros no campo. Levados até a ravina de Babi Yar, onde milhares de judeus foram assassinados, os prisioneiros começaram a ser mortos, entre eles três jogadores do Start. Enfileirados, lado a lado, eles percebiam os guardas caminhando em suas costas e contando. Quando chegavam a três, matavam o prisioneiro.

Kuzmenko, ex-capitão do Dínamo de Kiev e do Start, recebeu um golpe com o cano de um fuzil, nas costas, mas não caiu. Os alemães começaram a golpeá-lo seguidamente, até cair inconsciente. Então um oficial atirou em sua nuca.

A seguir, Klimenko, zagueiro que era a grande revelação do futebol soviético. Recebeu um golpe na espinha dorsal e caiu no chão, sendo imediatamente atingido po um tiro no ouvido.

Trusevich, o melhor goleiro soviético de antes da guerra, tb foi escolhido. Golpeado com um fuzil nas costas, caiu no chão mas imediatamente pulou de pé novamente, gritando "o esporte vermelho nunca morrerá!" Imediatamente fuzilado pelo soldado às suas costas, morreu com seu uniforme de goleiro, que usava todos os dias no campo de concentração.

E como em toda história heroica, há um traidor: Komarov, um dos goleadores da equipe, tornou-se informante dos nazistas. Acredita-se que tenha sido ele que entregou aos alemães a condição de oficial do NKVD de Korotkykh. Outros acham que ele tornou-se traidor apenas em Siretz, e que a própria irmã de Korotkykh, tentando salvar o restante da família da repressão, o tenha denunciado. Seja como for, depois que os nazistas foram expulsos de Kiev, Komarov nunca mais foi encontrado.

Por fim, a memória viva dos fatos foi Makar Goncharenko, o único jogador do Start a ter chuteiras e autor de dois gols contra o Flakelf, sobreviveu à guerra, falecendo apenas em 1996. Goncharenko escapou de ser morto pouco depois de seus companheiros. Ele estava fora do campo de concentração, junto com outro atleta, Sviridovsky, consertando botas em um posto policial. Fyodor Tyutchev, outro jogador do Start, foi mandado para a colheita, e ao passar pelo posto policial avisou Goncharenko do fuzilamento dos companheiros e que ele estava sendo procurado. Goncharenko e Sviridovsky fugiram, ficando escondidos até a libertação da cidade, em 6 de novembro de 1943.

Em 1981, no estádio do Dinamo foi construída uma escultura em homenagem aos jogadores do Start. E até hoje os possuidores de ingressos da partida de revanche contra o Flakelf tem entrada gratuíta no estádio.





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