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domingo, 13 de março de 2022

A questão do racismo nos clássicos


O tema deste texto já vem há muito merecendo a atenção do blog. E após o último Gre-Nal, atendendo a uma solicitação do Alexandre Perin, resolvi escrever sobre o assunto.

Comecemos por os tuítes que deram início à discussão mais recente:


Desconheço as fontes em que o autor se baseou para escrever seu TCC, mas apontaria alguns equívocos nos tuítes:
* A Chácara dos Eucaliptos passou a ser utilizada pelo Internacional em 1913, e não em 1912. Mas esse certamente é um equívoco pequeno.
* Os mesmos dão a impressão de que Chácara dos Eucaliptos/Eucaliptos são a mesma coisa, quando se refere à "Era do Eucaliptos". A Chácara dos Eucaliptos foi utilizada pelo Internacional de 1913 a 1930, e o Estádio dos Eucaliptos foi utilizado de 1931 a 1969.
* Em 1912 (e também em muitos anos depois) a expressão "macaco" não era utilizada em relação aos torcedores do Internacional.

A Chácara dos Eucaliptos, como o próprio nome diz, era um espaço grande. Além do "ground", existiam vários outros espaços: áreas para churrasco, passeio a cavalo, quadras de tênis. O nome da chácara vinha, obviamente, das árvores existentes no espaço, principalmente no caminho que levava ao campo, como mostra essa foto da revista Máscara, de 1918.

Na volta do campo, as árvores eram menos numerosas.

E, principalmente, não existem relatos de torcedores empoleirados em árvores. Isso pode se perceber olhando algumas fotos de partidas na Chácara dos Eucaliptos.
Internacional 0x2 Cruzeiro 21/04/1918
Internacional 5x3 Grêmio 19/05/1918
Internacional 2x0 Grêmio 20/07/1919

Note-se que mesmo nos Gre-Nais, com grande público, não há registro de pessoas penduradas nas árvores. Aliás, qual o motivo levaria um torcedor a deixar de ocupar seu lugar nas arquibancadas e espaços junto ao campo para subir em uma árvore? Talvez os defensores dessa "tese" quisessem fazer referência a torcedores sem ingresso, subindo em árvores para "espiar" o jogo de fora do campo. Mas isso era impossível, pois vimos na foto da entrada da Chácara que o campo de jogo ficava distante da mesma. E além disso as árvores ficavam dentro do espaço da Chácara.

Além disso, árvores eram comuns nos grounds da época. E nenhuma outra torcida foi chamada de "macaca". O motivo? Simples. Ver os jogos pendurados em árvores não era algo comum. E o motivo de chamarem os colorados de "macacos" nunca teve relação a subir em árvores.
Baixada - ground do Grêmio - 1918
Vila Cruzeiro - ground do Cruzeiro - 1918

Então, parece que a tese de que os torcedores colorados se empoleiravam nos eucaliptos da Chácara caiu por terra. mas antes de deixarmos a Chácara dos Eucaliptos, vejamos como "O Exemplo", o principal jornal da comunidade negra porto-alegrense, se refere a ela, em 27 de março de 1921:

O Internacional, como em várias outras ocasiões, cedeu seu campo para uma partida entre clubes da comunidade negra (1º de Novembro e Palmeira).

A expressão "macaco" não era utilizada em campos de futebol, na época. Mas a partir da segunda metade da década de 1930 o Internacional começou a ser chamado pelos torcedores rivais de "clube dos negrinhos". Teria isso a ver com subir em árvores? Certamente não. E nessa época o Internacional já jogava no estádio dos Eucaliptos, que apesar do nome, tinha poucas árvores, mudas trazidas da antiga Chácara. E essas árvores também ficavam dentro do espaço do estádio. Mais uma vez, qual motivo levaria um torcedor a deixar a arquibancada para subir em uma árvore?


O Internacional, desde 1928 já contava com atletas reconhecidamente negros. O primeiro foi Dirceu Alves. E logo chegariam mais: Mocinho, Venenoso, Tupan, Natal... O Rolo Compressor, esquadrão imbatível dos anos 1940, tinha Alpheu, Nena, Ávila, Tesourinha, Adãozinho (com exceção de Alpheu, todos com convocações para a Seleção Brasileira). E nessa época a festa que a torcida fazia na arquibancada, lançando confetes, serpentinas e soltando fogos à entrada do time em campo, era considerada "coisa de crioulo" pelos rivais, que já chamavam o Internacional de "Clube dos Negrinhos". Mas aos poucos a torcida gremista passou a copiar a festa, dando origem à faixa produzida por Vicente Rao, no comando do Departamento de Propaganda e Cooperação, "Imitando o Negrinho, hem?".


A década de 1940 reforçaria a identidade popular do Internacional, seja dentro do campo, seja em sua torcida. No dia 8 de abril de 1944, na Timbaúva, o Colorado bateu seu rival de forma dramática por 2x1 e conquistou o pentacampeonato da cidade. Segundo Martim Aranha, ex-presidente gremista, após a partida Antenor Lemos fez um discurso de saudação aos seus atletas, ainda no gramado da Timbaúva, onde teria utilizado pela primeira vez a expressão "Clube do Povo". Em 24 de junho de 1945, na Baixada, o Internacional venceu o Grêmio por 4x1. Após o jogo, extensa passeata de torcedores colorados saiu da Baixada em direção ao centro da cidade, carregando bandeiras, flâmulas e cartazes humorísticos e de exaltação ao clube, no clássico onde provavelmente foi desfraldada a faixa "Imitando o Negrinho, hem?". Também foi na década de 1940 que se reforçaram as expressões racistas contra o clube.

Ainda nos anos 1940, o clube passa a ser identificado nas charges de Pompeo com o personagem Doutor Marmita, um típico "malandro" porto-alegrense.

Nos anos 1950 o Internacional, nas charges de SamPaulo, começa a ser representado como um homem negro.

O chargista Alberto, do Jornal do Dia, passou a representar o Internacional como um "guerreiro africano", em um desenho bastante preconceituoso.

O chargista Marco Aurélio também optou por representar o Internacional e sua torcida como um homem negro.

Portanto, a partir da década de 1940 o Internacional e sua tocida passam a ser cada vez mais identificados com a comunidade negra. E as referências a colorados como macacos começam na mesma época. Coincidência? Essa atitude também era institucional. Em 20 de agosto de 1972, no clássico disputado no Olímpico pelo Torneio Cidade de Porto Alegre, a direção gremista mandou colocar uma faixa com a frase "Maior macacada do Rio Grande" sobre o espaço onde ficariam os colorados.

A versão de que o termo macaco não é racista e sim referência a torcedores colorados que subiam em árvores não foi a primeira tentativa de negar o racismo existente no rival. No conhecido texto "Porque sou gremista", Lupicínio Rodrigues lista vários argumentos do motivo de sua escolha clubística. Mas havia um problema a ser resolvido: a não aceitação de atletas negros pelo Tricolor. Lupicínio responde a esse problema com uma explicação usada nos anos 1960 e 1970:

O Grêmio foi o último time a aceitar a raça, porque em seus estatutos constava uma cláusula que dizia que ele perderia seu campo, doado por uns alemães, caso aceitasse pessoas de cor em seus quadros. 
 
E aí temos alguns problemas: em nenhum dos estatutos gremistas conhecidos encontra-se tal cláusula (e creio que não teria valor legal, se realmente existisse). A Baixada não foi doada ao Grêmio, o clube a comprou, como consta na própria História Ilustrada do Grêmio, volume 1, publicação lançada pelo clube em 1983.

Além disso, falar em Grêmio e "alemães" como algo distinto, nos primeiros anos do clube, não correspondia à realidade. Boa parte dos fundadores do clube eram de origem germânica. Dos oito dirigentes da primeira direção gremista, cinco eram de origem germânica. Nas direções seguintes a proporção aumentou. Na direção de 1905/1906, dos nove dirigentes, oito eram de origem germânica. As primeiras documentações do clube eram bilíngues, e as primeiras competições que disputou, com o Fussball, tinha sua programação veiculada em alemão.

E uma das mais recentes versões é a de que o Grêmio aceitava atletas negros desde seus primórdios. Os irmãos Antunes (Álvaro e Armando), que jogaram na década de 1910, são citados por alguns como os primeiros atletas negros do Grêmio. Abaixo, fotos de Álvaro Antunes:

Foto de Armando Antunes:


Em 19 de abril de 2014, Dona Anaíze, esposa do neto de Armando Antunes, e que conviveu vários anos com o ex-atleta gremista, respondeu ao texto http://peleiagaucha.blogspot.com.br/2012/05/armando-luiz-antunes-o-primeiro-negro.html da seguinte forma:

Com mil perdões, senhor Fábio, mas Armando Luiz Antunes foi o sócio número 1 do Grêmio mas nunca foi negro nem jogador de futebol. Foi, isso sim, filho de portugueses e um grande empresário do ramo do vinho que fundou e fez crescer em Caxias do Sul, com filial em Porto Alegre e São Paulo a Vinhos Luiz Antunes S.A.

Por outro lado, é verdade que o Grêmio teve atletas que hoje seriam considerados negros, antes de Tesourinha: Adão nos anos 1920, Laxixa no final dos anos 1930 (e que antes jogou no Internacional) e Hermes nos anos 1940. Mas como disse, HOJE seriam considerados negros. O racismo existente na sociedade da época levava muitas pessoas a negarem suas origens étnicas. E um tom de pele um pouco mais claro, uma condição financeira um pouco mais elevada, podiam ser elementos para a aceitação pela sociedade local como brancos. Sérgio Endler, na sua biografia sobre Tesourinha, assim escreveu: "Na verdade o Grêmio já utilizara em sua equipe jogadores considerados 'baianos'. Isto é, homens com algum traço biológico negro, mas com predominância branca na sua aparência física. (...) Entretanto, Tesourinha era o primeiro negro, de pai e mãe, de corpo e alma, na aparência e no registro civil".

A própria direção gremista, na pessoa de seu presidente Saturnino Vanzelotti, reconhecia, em 1952, que o clube não contratava atletas negros.

"A Diretoria do Grêmio Foot-Ball Porto Alegre vem trazer a conhecimento de seus associados e simpatizantes que, por decisão unânime, decidiu tornar insubsistente a norma que vinha sendo seguida de não incluir atletas de côr em sua representação de futebol".

E a manifestação da direção gremista foi respondida com uma nota de "ex-associados e simpatizantes descontentes", contrários à contratação de um atleta negro. Portanto, não foi a imprensa, historiadores ou a torcida colorada que afirmaram que Tesourinha foi o primeiro atleta reconhecidamente negro a atuar no Grêmio. Foram os próprios gremistas da época.

A nota dos gremistas descontentes pode ser vista na já citada obra "Tesourinha", de Sérgio Endler:

Na mesma obra, uma charge sobre esse momento da história do futebol gaúcho:

Negar o passado e tentar justificá-lo estimula que o preconceito se mantenha nos dias de hoje. O Grêmio já foi punido no caso Aranha. Torcedores do próprio Grêmio já foram atacados por uma facção da torcida por utilizarem uma bandeira com a figura de Everaldo. E todo Gre-Nal tem os cantos racistas da torcida, além de não serem raros vídeos de torcedores imitando macacos.

O Grêmio, enquanto instituição, faria muito melhor à sua história se seguisse os passos do Náutico, que em 2020 reconheceu o passado racista e buscou discutir novos rumos.


3 comentários:

  1. Devidamente documentado, creio que explicitado!

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  2. Belo texto, professor! Se me permite uma sugestão para o blog, gostaria de sugerir uma réplica do texto completo da crônica do Lupicínio.

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