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quarta-feira, 16 de setembro de 2020

A igualdade é vermelha

 


Manhã de 09 de julho de 1911. Sebastião da Silva sai de sua casa, situada na Rua Boa Vista, na Colônia Africana. Antes de começar sua caminhada até o centro da cidade, Sebastião passa rapidamente pela igreja da Nossa Senhora da Piedade, pedir graças para seu compromisso, logo à tarde. Mais adiante, pede à benção de Mãe Dada, e a proteção dos orixás.

Antes do seu compromisso, uma paradinha no boteco do Tavares, para limpar a garganta com um gole de canha. Depois, segue pelo Caminho do Meio até a avenida Bonfim, e dali para o centro, onde ia defender algum trocado, fazendo biscates.

No mesmo horário, em um dos palacetes da Barros Cassal, Manoel Fontoura dos Santos, o Nelito, acorda ainda sob efeito do sarau dançante da noite anterior. Depois de dançar foxtrote com a bela Aninha das Graças, o final de semana seria perfeito com um bom resultado no seu compromisso da tarde.

Já são 14 horas. Sebastião apressa o passo, não quer chegar atrasado ao compromisso. Nelito, já na rua, ainda decide se irá a pé ou de bonde. Como está um dia bonito, apesar do frio inverno gaúcho, decide caminhar um pouco.

Às 14:45 horas, Sebastião e Nelito, dois desconhecidos, chegam ao seu objetivo: o campo da Várzea. Ali, em instantes, o Internacional entraria em campo, para bater-se com o 7 de Setembro, pelo campeonato da cidade.

Nelito torce pelo Internacional porque o clube aceitava, sem maiores problemas, sócios vindos do interior, como ele. Além disso, alguns amigos e colegas da Faculdade de Medicina, como Carlos Kluwe, jogam no time rubro. Sebastião aprendeu a gostar daquele time quando passava pelo campo da Redenção e via os treinos. Aqueles rapazes não tinham a mesma arrogância dos atletas do Fussball e Grêmio, e ele nunca fora barrado quando se aproximava do campo, diferente do que ocorrera nos grounds da Voluntários da Pátria e dos Moinhos de Ventos. Além disso, diferente dos germânicos gremistas, no clube colorado ele percebia dois jogadores que, apesar de serem de famílias de classe média alta, tinham nitidamente sangue africano nas veias.

Ambos torcedores ficam na área reservada aos torcedores que assistem o jogo em pé. Normalmente Nelito teria ficado no pavilhão de madeira, mas havia chegado tarde, e o mesmo já estava lotado. Apesar de próximos fisicamente, a diferença social ainda mantém um cordão de isolamento entre os dois colorados.

15:00 horas. Começa o jogo! O Internacional veio a campo com Ávila II; Felizardo e Ygartua; Volkman, Kluwe e Padilha; Simão, Túlio, Galvão, Luiz Poppe e Vinholes. O time estava desfalcado de Médici e Nilo, entrando na equipe os reservas Felizardo e Luiz Poppe.

O Internacional domina o adversário, mas o time está tenso, devido ao fracasso da partida anterior. Os jogadores encontram dificuldade de transformar o predomínio em gols. Os dois torcedores também demonstram o mesmo nervosismo dos atletas. Quando Túlio chuta para o gol, mas o goleiro adversário defende, um “ohhh” percorre a torcida. Sebastião não resiste e comenta: “Hoje tá difícil”. Nelito responde: “Tem tempo, ainda, tem tempo, ainda!”.

Como que confirmando as palavras de Nelito, Galvão estufa as redes do 7 de Setembro, no final da 1ª etapa. Mas logo na saída de bola, Davi empata. A torcida fica insatisfeita. Alguns reclamam que o tempo já havia encerrado e que o cronometrista não havia avisado o árbitro. O próprio juiz, Henrique Sommer, sócio e atleta do Grêmio, não conta com a simpatia dos colorados. Enquanto ele afastava-se para descansar, Sebastião lhe acertou uma bergamota na cabeça, provocando risos na torcida.

Na segunda etapa, o jogo começa mais tenso. A torcida colorada decide participar, vaiando os adversários. Nelito, já enturmado com os torcedores do “baixo clero”, pede uma bergamota a Sebastião e acerta um dos jogadores do 7. O jogo segue e Vinholes, o primeiro artilheiro colorado, marca: 2x1. Festa vermelha! Em seguida, pênalti para o Colorado. Sommer não consegue encontrar a marca penal, no campo mal sinalizado. Sebastião, acostumado com a Várzea, pula a cerca que separava a torcida do campo e mostra ao juiz o local correto. Kluwe bate e... gooool: 3x1. A torcida vibra. Nelito grita para seu colega, que o reconhece e vai cumprimentá-lo, à beira do gramado. Nelito apresenta rapidamente Sebastião, que abraça, emocionado, seu ídolo.

O jogo já se encaminhava para o final quando Túlio completou o placar: 4x1. Felizes, os torcedores colorados abraçavam-se. Sebastião e Nelito até param para tomar uma cachacinha e comentar o jogo, em um quiosque próximo do campo. Depois... cada um para seu lado. A divisão social continuava existindo. Sebastião jamais frequentaria os saraus de Nelito, e este jamais participaria dos folguedos de Sebastião. Provavelmente, Nelito sequer atenderia pessoas como Sebastião, após formado. E Sebastião jamais teria acesso a uma medicina decente, como a proporcionada por Nelito.

Mas no “ground” da Várzea, por alguns minutos, o nome Internacional destruiu as diferenças de classes, e médicos e biscateiros foram irmãos, sem temores, sem preconceitos. Como dizia aquele hino... “Bem unidos, façamos, nesta luta final, uma terra sem amos...”.

Um dia este sentimento de igualdade sairá do campo e se espalhará pela sociedade.


PS: produzi esse texto alguns anos atrás, quando escrevia no Blog Vermelho e me foi pedido um texto literário que envolvesse a história colorada. A versão presente teve duas linhas acrescentadas. A partida realmente ocorreu, com os gols descritos. E um torcedor invadiu o campo para apontar a marca do pênalti. O campo estava mal marcado e apenas parcialmente cercado. Os torcedores faziam a linha lateral. Nesta partida não há referência a vaias da torcida do Internacional, mas um mês antes, contra o Nacional, a imprensa registrou, indignada, o comportamento dos colorados que vaiavam os adversários. A foto não corresponde ao campo da Redenção, do qual não disponho de fotos da torcida. É da Chácara dos Eucaliptos, no Gre-Nal do retorno de Carlos Kluwe, em 20/07/1919. Os personagens do texto são fictícios, mas a interação entre torcedores de classes distintas era uma situação possível.

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