Total de visualizações de página

quinta-feira, 28 de maio de 2020

Os confrontos entre os selecionados branco e negro em Porto Alegre


O futebol porto-alegrense, durante muito tempo, sofreu com a segregação. A comunidade negra, para poder praticar o futebol, precisou criar seus próprios clubes, ligas e competições.

Porém, em finais da década de 1920 e início dos anos 1930, os clubes da cidade começaram a abrir espaços para atletas negros. E esses atletas tiveram oportunidade de serem avaliados pelos dirigentes dos principais clubes em amistosos realizados entre selecionados brancos e negros. Pelo menos quatros amistosos entre esses selecionados ocorreram em Porto Alegre, em 1930, 1931, 1933 e 1942.

O confronto de 1930 eu desconheço detalhes. Infelizmente, na hemeroteca da Biblioteca Nacional não consta o ano de 1930 do jornal A Federação, único jornal porto-alegrense disponível online no período. Conheço apenas o resultado final, Selecionado Branco 2x0 Selecionado Negro.

O segundo amistoso ocorreu em 1931. A partida foi organizada por um grupo de atletas e teria no selecionado branco atletas dos clubes da Associação Metropolitana Gaúcha de Esportes Atléticos (AMGEA), que reunia as principais instituições esportivas da cidade, e no selecionado negro atletas dos clubes da Associação de Amadores de Futebol (AAF), a última das "Ligas da Canela Preta", reforçados por Tupan e Andrade (Concórdia) e Germano (Cruzeiro), que já atuavam na AMGEA.

Em 11 de janeiro de 1931, na Chácara das Camélias, os dois selecionados foram a campo. As seleções estavam assim compostas:

Selecionado Branco:
Penha (Internacional); Miro (Internacional) e Luiz Luz (Cruzeiro); Ribeiro (Internacional),
Magno (Internacional) e Risada (Internacional); Nenê (Internacional), Marroni (Internacional), Mingo (Marechal de Ferro), Fagundes (Cruzeiro) e Pesce (Cruzeiro)*

Selecionado Negro:
Alegrete (Americano); Batilana e Juvenal; Gradim, Andrade (Concórdia) e Souza; Sapo, Miúdo, Malacara, Germano (Cruzeiro) e Walter (Americano)**

 * Atuou no Cruzeiro em 1930.
** Provavelmente seja o Walter do Americano, que atuava de lateral-esquerdo.

Vários dos atletas escalados no selecionado negro não compareceram, o mais conhecido deles Tupan (os demais a imprensa não cita os nomes). No selecionado branco, os gremistas Luiz Carvalho e Foguinho, escalados, não compareceram. O árbitro da partida foi Arlindo Haensel, do Internacional.

Após a preliminar, em que dois clubes varzeanos, Conquistador e Padeiral, empataram em 1x1, começou a partida principal, que teve predomínio do selecionado branco no 1º tempo, e do selecionado negro na 2ª etapa.

Logo no início do jogo, Marroni abriu o placar para o selecionado branco. Mingo marcou mais dois, e Fagundes fez 4x0 para a equipe branca. No final da 1ª etapa, Sapo descontou para o selecionado negro.

No 2º tempo, o predomínio do selecionado negro foi incontestável. Logo no 1º minuto, Germano diminuiu, fazendo mais um gol pouco depois. Em seguida, em uma cobrança de escanteio, Risada fez 5x3 para o selecionado branco. A seguir, apenas o selecionado negro jogou. Sapo, um dos destaques da partida, marcou dois gols, empatando o jogo. Malacara virou o placar e Miúdo deu números definitivos ao jogo: Selecionado Negro 7x5 Selecionado Branco.

Os jogadores do selecionado negro que aparecem sem clube provavelmente atuavam nas equipes da Associação de Amadores, das quais não possuo as escalações. A indisponibilidade do jornal A Federação no ano de 1930 impede que se possa buscar mais informações. Mas na temporada de 1931, dois atletas do selecionado negro ingressam na liga oficial: Batilana, que foi jogar no Marechal de Ferro, e Gradim, no Força e Luz. Juvenal e Souza já haviam atuado no Ypiranga, em 1929. Em 1931, ingressaram, respectivamente, no Força e Luz e Cruzeiro.

Em 12 de fevereiro de 1933, no campo do São José, ocorreria novo confronto entre os dois selecionados, dessa vez para arrecadar em favor de um atleta cego.

As equipes estavam assim formadas:

Selecionado Branco
Salamoni (Grêmio); Dario (Grêmio) e Ireno (São José); Mabília (Internacional), Russo (Cruzeiro) e Sardinha II (Grêmio); Lacy (Grêmio), Javel (Internacional), Luiz Luaz (Americano), Zanini (São José) e Nenê (Grêmio)

Selecionado Negro
Trololó; Jorge e Museu; Lagarto, Gradim (Força e Luz) e Waldemar (Porto Alegre); Agostinho (Concórdia), Segismundo (Americano), Tupan (Internacional), Germano (Porto Alegre) e Dirceu Alves (Americano)

No selecionado negro, Waldemar e Germano jogaram no Porto Alegre em 1932, mas não aparecem em clubes na temporada de 1933. Agostinho jogou no Concórdia em 1932, mas o clube fechou as portas no final do ano. No início de 1933 acabaria sofrendo uma lesão no joelho e só voltaria a jogar em 1934, pelo Porto Alegre. E Dirceu Alves foi o primeiro jogador reconhecidamente negro a atuar pelo Internacional, em 1928. Voltaria ao clube em 1936.

A Federação deu pouca importância a partida. Informa a escalação, o placar (Selecionado Branco 6x4) e os artilheiros, esquecendo um dos artilheiros do selecionado negro. Para o selecionado branco, marcaram Zanini (2), Sardinha II, Javel, Lacy e Luiz Luz. Para o selecionado negro, Tupan, Segismundo e Dirceu Alves.

Finalmente, em 5 de maio de 1942, a Federação Rio-Grandense de Desportos (FRGD) tomou a iniciativa de realizar um amistoso beneficente, em favor do ex-jogador Artigas. Infelizmente não existem jornais on-line disponíveis no período. Tenho apenas o resultado da partida, Selecionado Branco 6x2 Selecionado Negro.

Há ainda mais uma partida, que teria ocorrido em 1929. Essa partida foi citada por Agostinho, em entrevista ao jornal Diário de Notícias, em 2 de julho de 1954. Ele afirma que em 1929 ocorreu um amistoso entre as seleções da AMGEA e da AAF, com as seguintes equipes:

AMGEA (brancos): Léo; Miro e Luiz Luz; Ribeiro, Magno e Risada; Mocinho, Ross, Luiz Carvalho, Marroni II e Fagundes

AAF (negros): Alegrete; Octacílio e Bombeiro; Zezé, Vadico e Trajano; Agostinho, Segismundo, Tupan, Dinga e Jaguarão

Mocinho, segundo Agostinho, apesar de ser negro, jogou na seleção da AMGEA pois era atleta do Internacional. Também segundo Agostinho, foi a primeira vez que dirigentes e torcedores dos clubes principais da cidade viram os atletas negros em ação. Tupan abriu o placar para a AAF, Luiz Carvalho empatou, Jaguarão e Tupan fizeram 3x1 para a AAF, e Fagundes descontou, terminando a partida 3x2 para o selecionado negro.

Após o jogo, ainda em volta do gramado, os atletas negros começaram a ser assediados pelos clubes brancos. O Americano teria contratado Alegrete, Zezé e Segismundo. O Ruy Barbosa ficou com Octacílio, Vadico, Trajano e Jaguarão. O Concórdia teria levado Tupan e Agostinho. E o Força e Luz contratado Bombeiro e Dinga. Essa partida marcaria o fim da AAF, que perdia assim seus melhores jogadores.

Confesso que não encontrei essa partida em jornais de 1929. Também há detalhes que não fecham:

Alegrete já era goleiro do Americano desde 1927, ano em que ingressou no clube, vindo do Ruy Barbosa.
Octacílio já era atleta do Ruy Barbosa desde 1928.
Bombeiro só aparece em escalações do Ruy Barbosa (e não do Força e Luz) em 1930.
Vadico já era jogador do Ruy Barbosa em 1928.
Trajano só aparece em escalações do Ruy Barbosa em 1931.
Zezé realmente ingressou no Americano em 1929, mas havia atuado no Cruzeiro na temporada anterior. Em 1936 ingressaria no Internacional.
Agostinho realmente ingressou no Concórdia em 1929.
Segismundo só aparece no Americano em 1931.
Tupan já era atleta do Concórdia em 1928.
Dinga ingressa no Ruy Barbosa em 1929, indo para o Força e Luz apenas em 1931.
Jaguarão já jogava no Ruy Barbosa em 1928.

Teria a partida ocorrido em 1928? Também não localizei essa partida no jornal A Federação. Teria ocorrido em 1930, antes da partida que o selecionado branco venceu por 2x0? É possível, mas não marcou o fim da AAF, que continuou em ação pelo menos até 1932, e nem representou a saída dos atletas da entidade para a AMGEA, pois vimos que alguns já haviam ingressado na entidade oficial antes, outros um tempo depois. Creio que Agostinho tenha se confundido, em suas memórias, misturando as partidas ocorridas nos anos 1930.

Mas certamente esses amistosos deram destaque à qualidade dos jogadores negros. Mesmo os que já estavam atuando na AMGEA tiveram oportunidade de jogar nos principais clubes da entidade, como o Internacional, Cruzeiro, Americano e Porto Alegre (o Grêmio, na época, não contratava jogadores negros).

Nenhum comentário:

Postar um comentário